Marisa Maiô no metaverso, esgoto no pátio: por que a educação brasileira precisa dar um “salto carpado"
“Secretário, essa escola é muito querida pela comunidade, mas está há meses enfrentando um problema sério com o esgoto que volta para seu único pátio”.
O alerta veio pouco depois que assumi a secretaria de educação de Pernambuco. Na Escola Nossa Senhora do Carmo, na periferia de Olinda, o cenário era desolador: alunos pulando o esgoto que chegava à porta das salas de aula. O caso não é isolado. Ele é o símbolo de uma dívida que inclui 6.658 escolas sem acesso à água potável e 5.765 sem esgoto sanitário no Brasil (ATRICON, 2024).
Na mesma semana em que a Associação Nacional dos Membros dos Tribunais de Contas no Brasil (ATRICON), visitava escolas pelo Brasil para tratar do tema, o Brasil conhecia Marisa Maiô, uma apresentadora de TV com humor ácido criada integralmente por Inteligência Artificial que, em poucos dias, teve milhões de visualizações em seus endereços na rede e "assinou contratos" com grandes marcas.
Afinal, o que a avatar de IA tem a ver com a escola sem banheiro? Tudo.
Elas são as duas pontas da realidade brasileira. A prova viva do que podemos chamar de ”O Imperativo da Dupla Hélice”: um fio representa a dívida com o passado — o esgoto, a infraestrutura, o básico não entregue; o outro fio representa a construção inadiável do futuro — a IA, as novas competências, a economia verde. O dilema não é "primeiro vamos consertar o esgoto e depois pensamos em novos modelos de educação?". Não há mais tempo. É preciso fazer tudo ao mesmo tempo.
A Dívida e o Incentivo Errado
Os números são amplamente conhecidos. De cada 100 crianças que chegam à escola, apenas 23 saem do Ensino Médio sabendo ler e argumentar no nível esperado — e só 3 dominam a Matemática mínima. Essa estatística é o resultado de um funil que combina evasão (apenas 71% dos jovens concluem o Ensino Médio até os 19 anos) e baixa proficiência dos formandos (IBGE, 2024; INEP, 2024). Eis a “dívida de século XX” exposta em números.
Para saldar essa dívida, não basta alinhar uma série de políticas públicas. É preciso corrigir os incentivos hoje existentes, materializados em um sistema de avaliação desenvolvido há mais de 20 anos, que não “conversa” mais com as demandas da contemporaneidade.
Um exemplo, que detalhei em artigo para o jornal “O Globo” (SCHNEIDER, 2024): em nossa avaliação nacional, o Saeb, um aluno típico encontra problemas como calcular quantos litros há numa caixa-d'água com três quartos de sua capacidade total de mil litros. Uma pergunta direta, que exige basicamente a aplicação de uma fórmula. Já no TIMSS, uma avaliação internacional, esse mesmo aluno depararia com um desafio mais instigante: calcular as novas dimensões de um jardim retangular cuja área precisa ser aumentada em 25%, mantendo a forma original.
Quando mantemos avaliações com baixo nível de complexidade, inadvertidamente sinalizamos que esse é o padrão aceitável. Não à toa o Brasil figurou entre os 5 últimos países em nossa primeira participação no TIMSS, em 2023 (IEA, 2024).
O Tsunami do Futuro
Enquanto lutamos com um sistema de incentivos preso ao passado, as ondas do futuro chegam com uma força avassaladora, redefinindo o que significa "trabalhar".
IA e Automação: O Fim da Carreira-Escada
A ascensão da Inteligência Artificial está automatizando não apenas tarefas manuais, mas também tarefas cognitivas rotineiras. O Fórum Econômico Mundial (2025) estima que, até 2027, cerca de 23% das ocupações atuais devem ser alteradas pela tecnologia. Isso não significa o fim do trabalho, mas uma redefinição massiva do valor humano. A velha "carreira-escada" — linear e previsível — está morta. Entramos na era da "carreira-constelação": uma vida profissional composta por múltiplos projetos, trabalhos temporários (gigs), empreendedorismo e aprendizado constante.
Transição Verde: A Economia da Sustentabilidade
A sustentabilidade tornou-se um dos maiores motores econômicos do século. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) projeta um ganho líquido de aproximadamente 22 milhões de empregos verdes até 2030 (ILO; IRENA, 2023). Esses postos se concentram em setores como energia solar, eólica, construção civil sustentável e bioeconomia. Além das novas profissões, vemos o "tingimento de verde" de todas as outras. A literacia climática deixa de ser um diferencial para se tornar um pré-requisito.
Demografia e Cuidado: A Economia da Longevidade
O Brasil envelhece em um ritmo acelerado. Projeções do IBGE (2023) indicam que a população com 65 anos ou mais, que era de cerca de 10% em 2022, deve saltar para 18% até 2040. Esse fenômeno demográfico cria uma enorme e crescente "economia da longevidade". A demanda por profissionais de saúde, cuidadores e especialistas em bem-estar vai explodir. As competências mais valorizadas neste setor são intrinsecamente humanas: empatia, comunicação, paciência e a capacidade de construir relações de confiança.
Globalização Digital: O Talento sem Fronteiras
A pandemia acelerou a dissociação entre trabalho e geografia. Relatórios da OCDE (2024) mostram que o trabalho remoto se estabilizou em níveis muito superiores aos de 2019. Isso consolidou o fenômeno do "talento sem fronteiras". Por um lado, abre uma oportunidade sem precedentes para que um jovem brasileiro preste serviços para uma empresa em Berlim ou Singapura. Por outro, aumenta a competição de forma exponencial.
Uma Ponte para o Amanhã
Diante dessa dupla e avassaladora realidade — a dívida de um sistema educacional preso ao passado e o tsunami de um futuro que não espera —, a pergunta se torna inadiável: como construímos a ponte? Como a educação pode, de fato, preparar nossos jovens para este novo mundo?
O Currículo-Canivete Suíço (O que ensinar?)
O primeiro passo é abandonar o "currículo-enciclopédia", focado em memorização, e adotar o "currículo-canivete suíço", um kit de ferramentas mentais para a vida, organizado em torno de competências como pensamento crítico, alfabetização digital e a capacidade de "aprender a aprender". Isso se faz na prática por intermédio de projetos interdisciplinares, que conectam a matemática, a ciência e as humanidades a desafios do mundo real.
Pilar 2: A Sala de Aula como Oficina (Como ensinar?)
De nada adianta mudar "o quê" se não mudarmos "como". A sala de aula do século XXI precisa ser menos palco e mais oficina. O professor sai do papel de "palestrante" para se tornar um "arquiteto de experiências de aprendizagem". Isso se dá por meio de metodologias ativas, como a Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP).
Pilar 3: A Avaliação como Bússola (Como medimos o progresso?)
Este pilar conecta tudo. Se a avaliação continuar cobrando a memorização de fórmulas ou a localização de informações em textos, todo o esforço se perde. Precisamos de um Saeb e de um Enem que evoluam para medir o que realmente importa: a capacidade de analisar dados, de resolver problemas complexos, de argumentar com base em evidências.
Tudo muito bonito, mas….
Para quem conhece a realidade das escolas brasileiras, causa um certo estranhamento uma proposta como essa, mesmo que tenhamos experiências de escolas que trabalham por projetos nas redes públicas e privadas, com maior o menor intensidade.
Nesse sentido, talvez o “deslocamento” do modelo atual não desse certo “de cima para baixo”, com o Ministério da Educação (MEC) construindo um novo currículo, mas por intermédio de incentivos à inovação e, sobretudo, com uma mudança gradativa nas avaliações externas, que, ao fim e ao cabo, “organizam” os currículos de escolas públicas e privadas. Não podemos incorrer no erro de implementação do chamado “Novo Ensino Médio”, que deixou as escolas sem norte. Como seria um movimento inicial em nossa escola de Olinda?
O Plano de 1 Semana para um Projeto na Escola
Segunda: A diretora reúne os professores de Ciências e Matemática com um desafio: "Como usamos nossas aulas para resolver o problema do esgoto no pátio?".
Terça e Quarta: Os alunos vão a campo. Investigam, medem, coletam dados.
Quinta: Em grupos, analisam os dados e esboçam soluções, aplicando conceitos de química, física e biologia.
Sexta: Apresentam as descobertas e protótipos para a comunidade escolar.
Em uma semana, os alunos não apenas aprenderam o conteúdo de forma aplicada, como desenvolveram colaboração, pensamento crítico e protagonismo.
Conclusão: O Nó da Dupla Hélice
A solução para a escola de Olinda não é escolher entre consertar o cano do esgoto ou instalar um laboratório de robótica. É usar problemas reais e conhecimentos prévios dos alunos como laboratório para ensiná-los a projetar uma solução para o esgoto. É assim que atamos o nó da dupla hélice.
O objetivo final não é apenas formar jovens "aptos" para o mercado de trabalho. É formar cidadãos capazes de questionar, criar e transformar esse mercado, guiados por uma bússola ética de equidade, dignidade e respeito.
A jornada é imensa. Mas ela começa com uma conversa.
PS.: Após minha visita à escola, o problema foi resolvido emergencialmente, graças à intervenção da Companhia de Água e Esgoto do Estado (COMPESA)
Para se Aprofundar
Tendências de emprego e competências para o trabalho
WORLD ECONOMIC FORUM. The future of jobs report 2025. Geneva: WEF, 2025. Panorama global de 803 empresas sobre criação/extinção de vagas e as 10 competências que mais crescerão até 2030.
INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION; INTERNATIONAL RENEWABLE ENERGY AGENCY. Renewable energy and jobs – Annual review 2023. Geneva: ILO/IRENA, 2023. Quantifica empregos verdes existentes e projeta demanda até 2030 por qualificação técnica.
Aprendizagem ao longo da vida
ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. OECD Learning Compass 2030 – Conceptual framework. Paris, 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/education/2030-project/. Síntese de evidências que fundamenta o quadro internacional de competências para aprendizagem ao longo da vida.
Avaliações internacionais
INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR THE EVALUATION OF EDUCATIONAL ACHIEVEMENT. TIMSS 2023 International Results in Mathematics and Science. Amsterdam: IEA, 2024. Relatório completo da avaliação que compara desempenho em matemática e ciências de 47 países, oferecendo benchmarks e exemplos de itens de maior complexidade.
E você, o que pensa? Qual o primeiro passo que sua comunidade poderia dar? Deixe seu comentário abaixo.
Referências
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MEMBROS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS. *Diagnóstico nacional de infraestrutura escolar*. Brasília, 2024.
FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL. *The future of jobs report 2025*. Geneva: WEF, 2025.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. *PNAD Contínua: indicadores de educação 2023*. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. *Projeção da população do Brasil por sexo e idade 2010-2060*. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. *Resultados do Saeb 2023*. Brasília: Inep, 2024.
INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR THE EVALUATION OF EDUCATIONAL ACHIEVEMENT. *TIMSS 2023 international results in mathematics and science*. Amsterdam: IEA, 2024.
INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION; INTERNATIONAL RENEWABLE ENERGY AGENCY. *Renewable energy and jobs – Annual review 2023*. Geneva: ILO/IRENA, 2023.
ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. OECD Learning Compass 2030 – Conceptual framework. Paris, 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/education/2030-project/.
ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. *OECD employment outlook 2024: AI and the labour market*. Paris: OECD Publishing, 2024.
PHILIPPS, R. Marisa Maiô: o primeiro talk-show criado por IA. *Nexo Jornal*, São Paulo, 14 maio 2025. Disponível em: [https://www.nexojornal.com.br/](https://www.nexojornal.com.br/). Acesso em: 16 jun. 2025.
SCHNEIDER, A. Brasil precisa elevar o nível das avaliações educacionais. *O Globo*, Rio de Janeiro, 1 dez. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2024/12/brasil-precisa-elevar-o-nivel-das-avaliacoes-educacionais.ghtml. Acesso em: 17 jun. 2025.
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. *Conectividade nas escolas públicas: auditoria operacional*. Processo 017.456/2022-6. Brasília, 2023.
Excelente reflexão e fiquei pensando no desafio imenso que temos para nos "livrar" deste sistema de avaliação que já não funciona e tem sido usado das piores maneiras possíveis.
Mas também fiquei pensando no que disse sobre sairmos na avaliação de habilidades e passarmos a analisar as competências. Pensando nos conceitos, habilidade e competências, o conjunto das primeiras habilita a apreensão das segundas, mas não precisa ser tão linear assim, não é? Acho que é uma boa chave pra se pensar essa virada. Muito bom!